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Escritos Psicanalíticos

Produções escritas em psicanálise, desde a experiência como analisante, analista e pesquisadora. Escrevo como analisante, desde uma posição que topa com um saber furado. Escrevo como analista, desde uma posição que topa supor um saber na analisante, ao mesmo tempo em que topa compor com sua suposição de um saber na analista, para favorecer uma travessia de construção de algum saber singular por parte da analisante, não sem essa outra, esse resto que aceitamos (des)ser enquanto analistas. Escrevo como pesquisadora, já que a psicanálise, desde como Freud a colocou no mundo, é método de tratamento e investigação. Então, pesquisadora-analisante-analista fazem uma trinca, um nó com um furo no meio, em torno do qual se fazem giros e torções elaborativos. Encore, mais, ainda.

Artigo

"Uma escrita-mulher que goza do equívoco"

Artigo publicado na Revista Stylus de Psicanálise Nº 45. Título: "Uma escrita-mulher que goza do equívoco". Fabiana Rodrigues Barbosa e Ivan Estevão. Palavras-chave: Gozo nãotodo fálico; Mulher; Equívoco; Literatura; Escrita. >> Clique aqui para ler o artigo.

Dissertação de mestrado

"Há mulher, não hesite: o impossível escorre em Água viva - nãotoda clínica, teoria e transmissão da psicanálise lacaniana"

Dissertação de mestrado em Psicanálise Lacaniana, realizada com bolsa da CAPES e orientação do Prof. Dr. Ivan Ramos Estevão, no Depto. de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP-SP, e defendida em junho de 2023. Título: "Há mulher, não hesite: o impossível escorre em Água viva - nãotoda clínica, teoria e transmissão da psicanálise lacaniana". Clique aqui para ler ou baixar a dissertação.

Artigo

"Amor e isolamento dos corpos: inflexões do viver na pandemia em 2020"

Artigo publicado na Revista Stylus de Psicanálise Nº 41. Título: "Amor e isolamento dos corpos: inflexões do viver na pandemia em 2020". Fabiana Rodrigues Barbosa e Fabio Menezes dos Anjos. Palavras-chave: Não-todo; Amor; Laço; Coronavírus; Capitalismo. >> Clique aqui para ler ou baixar o artigo.

Artigo

"Do que se nega ao negar o coronavírus: uma contribuição psicanalítica"

Artigo publicado na Revista Stylus de Psicanálise Nº 41. Título: "Amor e isolamento dos corpos: inflexões do viver na pandemia em 2020". Fabiana Rodrigues Barbosa; Carolina Escobar de Almeida Prado; Ivan Ramos Estevão. Palavras-chave: Coronavírus; Negação; Psicanálise; Modos de gozo; Sofrimento. >> Clique aqui para ler ou baixar o artigo.

Bem-vindxs ao blog

Ainda como parte da seção "Escritos" deste site, a seguir apresentam-se textos de minha autoria ou co-autoria, publicados em periódicos ou livros impressos, ou não publicados, em sua maioria apresentados em encontros presenciais ou virtuais entre psicanalistas do Campo Lacaniano. Desfrute! Se for utilizar trechos em algum escrito seu, lembre-se de citar a fonte. Boas leituras!

"A (não) todo instante (já) esvanecido"

Este trabalho, na presente versão, foi escrito por mim e apresentado no Seminário das formações clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de Salvador (Bahia/BR) em abril de 2023. Houve uma versão reduzida apresentada antes, em novembro de 2022, no Encontro Nacional do Grupo de Pesquisas "Outrarte - psicanálise entre ciência e arte", do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (SP/BR). Mais tarde, ao fim de 2023, foi escrita uma versão ampliada, que se tornou capítulo do livro de título "O corpo na ponta de lalíngua", organizado por Suely Aires, Conceição Azenha, Markus Lasch e Nina Leite, do Outrarte/Unicampo, publicado pela editora Mercado das Letras, 2023. Todas as versões deste escrito são derivações da pesquisa de mestrado realizada com bolsa da CAPES e orientação do psicanalista e Prof. Dr. Ivan Ramos Estevão, no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP-SP, defendida em junho de 2023.

Nesse início frio de outono de 2023, é uma alegria estar com vocês no Seminário das formações clínicas do FCL Salvador, essa cidade quente, com colegas que admiro. Agradeço à Pollyana Almeida pelo convite, à Ida Freitas pela interlocução no debate, e saúdo muitíssimo a Escola e esse Fórum por me proporcionarem a grande alegria de partilharmos dos debates em torno do caríssimo tema anual de vocês, que estudei no mestrado. Por isso trago aqui um recorte dessa pesquisa em que mergulhei, no Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP-SP entre os anos de 2021 e 2023, com orientação do Ivan Ramos Estevão e apoio da CAPES. Esse recorte é também uma expansão do que apresentei no Encontro Nacional das Escolas dos Fóruns do campo Lacaniano em 2022; e uma variação de algo que está em preparação para se tornar um capítulo de livro, sob o mesmo título: “A (não) todo instante (já) esvanecido”. Então, vamos ao trabalho. Começo citando Clarice Lispector (Lispector, 1973/93):

 

Quero escrever-te como quem aprende (p. 18). [...] Esse texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha sua secreta redondez antes invisível quando é visto de um avião em alto vôo. [...] Transmito-te não uma história mas apenas palavras que vivem do som. (p.31). E antes de mais nada escrevo-te dura escritura. Quero como pegar com a mão a palavra. A palavra é objeto? [...] Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente viva. A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. [...] Quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real. (p. 17) Atrás do pensamento não há palavras: é-se. (p.33)

 

Como podemos testemunhar em uma obra literária a pertinência teórico-clínica do nãotodo enquanto gozo? Como essa noção de gozo e suas funções podem ser expandidas por meio da articulação entre psicanálise e literatura? Vejam que em ambas as perguntas o enigma reside no “como”, na modalidade. Isso se deve ao fato de que nosso objeto de investigação é o modo de gozar com o inconsciente nomeado por Jacques Lacan (1972/1973[2010]) como nãotodo; e também ao fato de que tomamos uma posição de leitura-escritura evocante desse gozo. Assim, essa pesquisa partiu do miúdo da prática da clínica psicanalítica e se expandiu ao campo da literatura, trazendo de volta tal experiência à clínica, num constante permear mútuo, cujos resultados partilhamos aqui parcialmente.

 

Tomamos a Psicanálise freudolacaniana como método de tratamento e investigação. Inicialmente clínico e muito ligado a um projeto científico, expandiu-se ao compromisso com a produção de uma teoria e sua transmissão, assumindo uma diversidade de formas, tantas vezes articuladas ao campo das artes. Destaca-se para nós a literatura, que muito ensina à psicanálise, ambas operando com discursos que tocam, por meio da palavra, o real. Bem cedo, em 1953, em “O simbólico, o imaginário e o real”, Lacan (1953[2005, p. 45]) traz que “o real é ou a totalidade ou o instante esvanecido”. Os ditos do analisante se marcam no instante, enquanto o dizer escapa. A palavra literária também engana: ao se fazer de permanente impressão, diante da leitura singular revela-se polissêmica, volátil como o dito.

 

Para abordar, via psicanálise, o que se marca e o que escapa no instante, vamos ao litoral com Água viva, de Clarice Lispector (1973[1993]), publicada no Brasil no mesmo ano em que Lacan formulava na França algo sobre a sexuação no Encore, seu Seminário 20 (1972/1973[2010]). Se Lacan fez do Seminário 10 um marco por inaugurar a noção de gozo diferenciando-a da pulsão freudiana e do desejo; marca também o Seminário 20 com as fórmulas da sexuação, em que estabelece dois modos de gozar com o inconsciente, sendo o modo nãotodo um passo lógico além e aquém consistência, não sem ela, afirmando a psicanálise como lógica não-binária. Dentre outros recursos, Lacan afirma que “não há relação sexual” (p. 21) para falar de uma inevitável hiância nos laços intersubjetivos, problematizando a questão das perdas, do resto, do equívoco na transmissão. Recorre também ao neologismo linguisteria, que articula poesia ao inconsciente estruturado como linguagem, ao impossível de ser dito e ao dizer, que “é justamente o que fica esquecido por trás do que é dito no que se ouve” (p. 69).

 

A problematização de Lacan em torno do enlace e dos riscos entre clínica, teoria e transmissão, parece-nos ter como algo central a lógica nãotoda fálica, que nas fórmulas da sexuação Lacan associa ao significante-semblante mulher, como o que não se opõe ao fálico (ou significante-semblante homem), mas está aquém e além dele. É aí que Lacan (1973[2003, p. 312]) se apoia para afirmar que “é do não todo que depende o analista [...] para tanto é preciso levar em conta o real”. A ética da psicanálise opera via lógica nãotoda.

 

O que não se dá sem riscos. Nina Leite, em “O Esquecimento do dizer: efeitos sobre a leitura” (2019) marca que Lacan fez seu retorno a Freud perguntando-se: o que teria levado à transformação dos conceitos freudianos em preceitos, regras para um fazer? “O que teria sofrido recalque nessa transmissão?” (p. 3). Uma vez que o objeto próprio da psicanálise, o inconsciente, é algo que ao mesmo tempo escapa à investigação e produz marcas, as operações com os conceitos em psicanálise inevitavelmente sofrerão deformações por parte de cada leitor. Mas se isso fica recalcado, conceitos serão rebaixados ao estatuto de normas.

 

Tal investigação de Lacan, seguindo Freud, assume a psicanálise nos litorais com outros campos do saber, em diálogos permeados pela noção de falo não como parte do corpo, mas significante cuja função aponta para a impossibilidade de dizer toda a verdade, que se manifesta com estrutura de ficção. A nãotoda mulher e o todo homem são posições na sexuação, modos de gozar com o inconsciente, presentes em todos nós. E a posição nãotoda remete à topada com um relance de Real, a falta-a-ser, algo que goza suplementar e não complementar, evocação de gozo místico e tocante ao corporal.

 

Para Lacan (1953[2005, p. 45]), o Real está no “instante esvanecido”, como, por exemplo, quando um analisante se choca com o silêncio do analista. Esse vazio, mar aberto entre palavras, desvela a impossibilidade de tudo dizer, convocando, no entanto, algum dizer; o que associamos ao fugidio “instante já” de Água viva. Clarice diz: “as palavras certas me escapam” (Lispector 1973[1993, p. 6]). A estrutura de Água viva, em fluxo contínuo, nos lança em mar aberto, flutuando entre enigmáticas águas vivas. Algo se transmite entre o desamparo e o desejo decidido.

 

Nossa hipótese é a de que, enquanto analistas, podemos nos beneficiar da função poética em nossas leituras e escritas. O que traz relevo à questão da formação e da posição do psicanalista que se sustenta pela ética da psicanálise e se interroga com Lacan (1957[1998]) em “A psicanálise e seu ensino”: a verdade do inconsciente deve ser situada nas entrelinhas. Podemos testemunhar Água viva (Lispector, 1973[1993]) como paradigma da modalidade de gozo nãotodo, evocado por nossa leitura. Não iremos inferir, como fez Lacan com Joyce, que se o gozo pode ser testemunhado, comparece na experiência de escrita de Clarice. Com Barthes (1968[2004]), em “A morte do autor”, entendemos que o autor precisa morrer para a emersão do leitor. Não temos acesso à experiência de Clarice, nem é nosso objetivo investigar seu psiquismo. Apenas nos debruçaremos rente à materialidade do texto de Água viva, em diálogo com sua poiesis, recorrendo também a menções de seus comentadores, para elaborar os impactos causados em nossa leitura do nãotodo, no intuito de demonstrar a pertinência teórico-clínica desse gozo, testemunhado na literatura. Para tanto, convido vocês a um percurso em três tempos. Tempo 1: ouvir o vazio; Tempo 2: não compreender; Tempo 3: escrever com o corpo.

 

Tempo 1: ouvir o vazio

“A literatura é acomodação de restos” e desde Freud tem recebido da psicanálise mais alento, diz Lacan (1972 [2003, p. 16]) em “Lituraterra”. Tanto leitor quanto escritor acomodam ali seus restos, e o alento prestado pela psicanálise reside na forma d’Isso testemunhar. Minha apreciação dos restos acomodados em Água viva se deu pelo mergulho nas líquidas palavras em diversas leituras, e na escuta de seu jorro na voz da jovem mulher que gravou a narração do  audiolivro da obra literária. Abri minha escuta a essa voz, consenti ser pescada em minha não palavra. A artista-personagem que questiona seu próprio processo de escrita me capturou em diálogo, que sustentei também em primeira pessoa. Nesse processo ficcional, mediado pelo nãotodo como operador de leitura-escuta-escrita, éramos duas mulheres, a psicanalista e a artista de Água, que atribui a si um nome, e parece me autorizar a usá-lo: “Amptala” (Lispector, 1973[1993, p. 50]).

 

Estamos diante de uma voz narrativa com poucos elementos para apreensão da identidade da personagem, que fala em primeira pessoa. Escreve a um amor perdido, mas nunca lhe entregaria tal carta. A publicação a leitores desconhecidos destitui o destinatário e dita o destino do sintoma (Lacan 1972[2003, p.15]) também em “Lituraterra”. O leitor se torna testemunha de uma escrita-sintoma que se lança em espaço aberto. Clarice publica a carta de Amptala sob nome aquático. Me autorizo a interceptá-la e responder-lhe nãotoda. Escolhi trechos da primeira metade do livro, como critério de corte por amostragem aleatória. Trago a seguir uma parte do diálogo.

 

Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.

Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão. (Lispector 1973 [1993, pp. 14-15])

 

Amptala, você se fragmenta incorpórea nos instantes, com o corpo. É pelo corpo que você consente ao Isso brotar. Sem ordem ou hierarquia, nãotodo fálico. Não sem a palavra que coloniza, marca, delimita e castra. Mas logicamente com o limite imposto, incontornável. Você persegue sua palavra intocada, mesmo sabendo-a impossível. Então você a cria, ficciona. E ela continua intocada. Você habita o tempo com o espaço de seu corpo. Você sabe algo da quarta dimensão, a palavra, seu continuum intangível de tempo e espaço, mais ainda, encore. O que causa, o porquê, fica no passado, não te interessa, e sim o como. Me lembra Freud, que em “A feminilidade” (1933), se dizia menos interessado em tentar descrever o que é uma mulher, do que em investigar como uma mulher vem a ser. Como o passado causou em segredo desejo dessa escrita do agora. O como é o fio. Redonda, enovelada e tépida, às vezes frígida escrita como instantes frescos, fluxo de Água que treme. O frio de um mínimo distanciamento que sustenta o fluxo tempera o ímpeto.

 

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. Só no ato do amor [...] capta-se a incógnita do instante [...] a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si: no amor o instante de impessoal joia refulge no ar, glória estranha de corpo, matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes – e o que se sente é ao mesmo tempo que imaterial tão objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no alto, alegria, alegria é matéria de tempo e é por excelência o instante. E no instante está o é dele mesmo. Quero captar o meu é. (Lispector 1973[1993, pp. 13-14])

 

De novo o ar, a respiração. O volátil, o fugidio. Me ocorre que seu “instante-já” se parece com o “instante esvanecido” de Lacan (1953[2005, p. 45]). E que o espaço é dimensão em que o corpo se faz tangível. A palavra tem um corpo, materialidade, pode tocar o corpo. O espaço-tempo é a quarta dimensão. Então a palavra é espaço-tempo? A vida é maior que um acontecimento. Vida como cadeia associativa. O que se sente é abstrato, mas pode ser límpido. O amor, pra você, Amptala, é ato. Para nós psicanalistas também. E mais: enquanto você diz que é nesse ato instantâneo que se capta a dimensão incógnita do instante, Lacan (1972/1973[2010]) dizia que o amor se dá em suplência à relação sexual que não há. E também do instante de miragem da relação. Esse é o momento do ato de amor, captação da incógnita miragem. Sua impessoal joia, Amptala, seu saber não sabido, seria pra nós um saber sem sujeito, saber inconsciente. Matéria-corpo tocada pelo arrepio instantâneo. O mistério intangível do corpo Real, ao mesmo tempo imaterial e marcante, escapa mas deixa marcas. Algo na atualidade do instante escapa. Justamente aí existimos, fugidios, dinâmicos, inconsiStentes. O instante oportuno, como o chamamos em psicanálise, é alegre de possibilidades.

 

Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a o que salva então é escrever distraidamente.

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.

O que te direi? te direi os instantes. (Lispector 1973[1993, pp. 25-26])

 

Sua arte, Amptala, você faz com palavra a serviço do silêncio, do vazio do entrechoque, da entrelinha. Quem morde a isca é o leitor, que atribui vazios e que só existe na entrelinha do vazio aberto das palavras incompletas. Significantes em cadeia esboçada por você e continuada pelo leitor que você seduz. Sua verdade, Amptala, assim como a nossa em Psicanálise, é feita de invenção. A criação é imprescindível também na clínica, onde o instante oportuno é precioso. Estamos à espreita, flutuantes. O analisante lança iscas, devolvemos em espelho. Qual peixe orbitante? Que palavra é isca, qual passa ao largo? Que peixe ex-orbitante escapa ao laço?

 

Você não se limita a um sentido, sabe que a significação oculta te ultrapassa em tempo e em espaço, aquém e é além de sua história singular. Esse “contato com o invisível núcleo da realidade” é semelhante ao Real de Lacan.

 

Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio.

[…]

Mas há também o mistério do impessoal que é o “it”: eu tenho o impessoal dentro de mim e não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca: mas seco-me ao sol e sou impessoal de caroço seco e germinativo. Meu pessoal é húmus na terra e vive do apodrecimento. Meu “it” é duro como uma pedra-seixo.

A transcendência em mim é o “it” vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem. Será que a ostra quando arrancada de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem olhos. Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda.

[…]

Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda. Os fatos da vida são o limão na ostra? Será que a ostra dorme? (Lispector 1973[1993, pp. 34-35])

 

É delicado e precioso pra nós clínicos, Amptala, quando você diz “ouve-me, ouve o meu silêncio”. Convocação de Dora a Freud. Ouvir a não-palavra da fala, suportar o vazio e não completá-lo com apressada interpretação. As “águas abundantes” são a “força de corpo nas águas do mundo”, são a força dos fluxos. O que vem do fluxo, precisamos ouvir também enquanto fluxo. No instante, mas também no aquém e no além. Amptala, assim como você diz “o que falo nunca é o que falo e sim outra coisa”, digo-lhe: o falo nunca é o pênis e sim outra coisa. O seu “o que falo nunca é” precisamente aponta à própria falta, ao que faltou falar. A palavra fálica e nãotoda fálica, ao marcar algo, ereção de uma verdade possível, revela que algo não entrou na dança. Resta ao outro, que escuta, fazer captação-criação a partir da energia que está no silêncio do entre em cadeia.

 

Já sabemos, Amptala, com Marta Peixoto (2004) e Flávia Trocoli (2015), duas pesquisadoras da obra de Clarice, que esse “impessoal que é o ‘it’”, que “não é corrupto e apodrecível pelo pessoal”, é de uma resistência, de uma insistência em não se inscrever, em não se corromper pela matéria. Um “caroço seco”, mas também “germinativo”, cujas partes se inscrevem no pessoal, que “é húmus na terra e vive do apodrecimento”. Então há partes do “it”, d’A Coisa freudiana, que são duras “como uma pedra-seixo”, e que vão insistir em não se inscrever; e outras que perecem, transmutam, tendo o inconsciente Real como subjacência. Ao mesmo tempo Amptala, você que escreve em paradoxo, diz que o que transcende em você é o “‘it’ vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem”. Seu “it” é duro feito semente insistente, e mole fluido como ostra, que tem concha como casca, e mesmo vazia de molusco ainda é cheia de som inconsistente, é corpo-memória e testemunha: há-mar! Amar como ponto de estofo para sustentar o vazio. Paradoxo: experiência de inconsistência é suporte. Lacan, no Congresso sobre a transmissão (1979, pp. 219-220), dizia ser a psicanálise intransmissível. Cada psicanalista seria forçado a reinventá-la, tendo em conta o Real, a inconsistência e a feminilidade. Analisamo-nos na presença de um outro, que recolhe nossos ditos, mastiga e os cospe de volta, tornando-se de novo vazio como a concha, pra que possamos fazer algo com Isso, e depois criar traquejo com o vazio. Nos restos estará o Eu destronado, ressignificado. É na iminência de ser devorada pela noite, quando você segue a ventania, Amptala, que esse movimento te estraçalha, seu eu se fragmenta. Mas sabes que uma hora terás de “entrar no jogo que se desdobra em vida” para manter sua própria vida. Seu jogo é, ao se fragmentar em vida criativa, poder não consistir totalmente sem enlouquecer.

 

Por fim, Amptala, não posso me esquivar do que me causa escutar minha própria voz pronunciando seu nome. Amptala, Amp-tala, Amptá-la, Amputá-la. Um corte aí se evoca. Uma castração. Algo é amputado, exilado de sua origem. Perde-se. O registro do membro fantasma é subjacência do vazio. O incontornável desmembrado, fragmentado, apartado, existindo apenas na fantasia de membro do que um dia seria todo.

 

Tempo 2: Não compreender

A voz narrativa diz: “Eu me dou o nome de Amptala. Que eu saiba não existe tal nome. Talvez em língua anterior ao sânscrito, língua it” (Lispector 1973[1993, p. 50]). O sânscrito, língua das mais antigas, é língua-mãe. Na cultura do Yoga há o mito de que quando o sânscrito foi criado, os encarregados retiraram-se para a solidão de grutas remotas, com intuito de escutarem sons provenientes dos chakras, que são pontos de intersecção entre os nadis, que por sua vez são canais condutores de energia sutil pelo corpo, estrutura imaterial análoga à das veias e artérias do corpo físico. Cada som escutado deveria ser representado por uma letra do alfabeto, de modo que ao pronunciarem-se palavras a vibração dos sons ressoaria nos chakras, despertando pela via corporal as emoções transmitidas (Feuerstein, 1998). A beleza da associação que Clarice faz no momento em que a voz narrativa cria para si um nome, que associa poder ter existido talvez em sânscrito, “língua-it”, nos situa. A Língua do Real do corpo. Lalíngua no corpo falante. Ancestral herança inescapável, ao mesmo tempo em que deixa espaço para seguirmos criando. Esse seria o gozo do Real, um gozo paradoxal, infinitamente nãotodo, limitadamente todo.

 

Lúcia Castello Branco (2004, pp. 191-200) reconhece nos restos, no que não presta, o atrator da escrita de Clarice. Desse resto, a “não-palavra”, silêncio cheio de tagarelice do que “não cessa de não se inscrever”, emergem as “palavras de água”, o “it” de Água viva, que se manifesta no “instante-já”. Associamos os restos que não prestam ao gozo que não serve a nada, de que Lacan nos diz no Encore (1972/1973[2010]). No litoral entre o dito e o não dito, palavra marcada e letra que não se toca, nos deparamos com um vazio nada vão, às voltas do qual se pode estar via posição nãotoda fálica, que faz furo na ilusão total, e do qual se pode até fruir, como diz Barthes (2015, p. 11) em “O prazer do texto”. Chegamos ao litoral entre psicanálise e literatura pelo impulso angustiante, estranho, familiar, reconfortante e inquietante de Água viva. Vejamos mais algumas dimensões da força desse encontro.

 

Clarice chega ao Brasil perto da Semana de Arte Moderna de 1922, cujas marcas comparecem a posteriori em sua arte. Segundo Flavia Trocoli (2015), desde o fim do século XIX, no romance da literatura moderna brasileira, enquanto alguns autores se sustentavam na “onisciência e univocidade da voz narrativa” e na “linearidade espacial e temporal” (p.19), Machado de Assis rompia com categorias tradicionais. Oswald e Mário de Andrade recolhem tais sementes nos anos 1920 no sudeste do Brasil, enquanto Clarice crescia no nordeste. Nos anos 1930 Cornélio Penna e Lúcio Cardoso avançaram com o fragmentarismo. Ainda associado a uma perspectiva religiosa em Lúcio Cardoso, passa a se associar na década seguinte a questões da linguagem pela jovem Lispector em Perto do coração selvagem (1943[1998]). Flavia Trocoli (2015, p.20) nomeia sua linguagem como “opaca e equívoca”, articulando à teoria lacaniana da sexuação (1972/1973[2010]), ao enigma não transparente, ao que não opera pela via do sentido unívoco. O que nos leva a pensar que há algo em Clarice e Lacan que opera para fazer dissipar-se o eu e advir o Isso.

 

Água viva foi inicialmente escrita por Clarice como Atrás do pensamento: monólogo com a vida, título posteriormente alterado para Objeto gritante. O processo levou cerca de três anos e envolveu perder para sintetizar, transliterar impulso em ato de transmissão. Sonia Roncador (s/a) analisa que a transformação operada por Clarice mantém e edita rastros do método inicial de composição com fragmentos híbridos de diferentes stati literários (crônicas jornalísticas, textos literários pregressos e inéditos). Nos aspectos formais da escrita, atenua a narrativa autobiográfica e as justaposições de diferentes tons; finalmente deflacionando a consistência do discurso. Torna sua novela menos viril. Interpretamos que Clarice suaviza o grito, elabora traquejo com a liberdade fragmentária e heterogênea, mantém a fluidez do ímpeto da escrita primeira de Atrás do pensamento. Não sabemos quão intencional foi essa transformação pelo manejo estilístico do hibridismo dos fragmentos, mas concordamos com a análise de Roncador, e por isso nomeamos a narrativa clariceana de nãotoda fálica. Em Água viva o encontro é com a fluidez não hierarquizada, cuja personagem fala corporalmente conosco desde a matéria de seus instantes. É considerada pela atriz Laila Garin (2020) a obra em que Clarice despoja-se, leva ao ápice a liberdade estilística. Uma redução de “caráter fragmentário” (Carreira, 2014, p. 218), como se chegasse ao ponto de letra. Para Lacan, a noção de letra diz do Real intangível, com rastro significante percebido no instante. A letra não se escreve, mas o ato da escrita com desejo decidido impõe corpo ao papel, paradoxalmente de modo nãotodo, sabendo que algo sempre escapa.

 

O paradoxo é tratado por Lacan (1972/1973[2010, pp. 220-221]) no Encore, ao situar seu pensamento além da lógica clássica aristotélica, consistente, binária, em que “há-um” que não seria castrado, uma exceção; enquanto outros castrados. Mais além está o paradoxo; a ex-sistência, qualificada por François Récanati em intervenção no Seminário 20 como excêntrica à verdade e sustentada pelo simbólico (p. 241); a verdade ficcional singular dos que se põe a dizê-la. Lacan pensa não binário: há o que se faz castrado-e-não-castrado, nãotodo castrado. Sua existência é indeterminada, inconsistente. Não existe A mulher enquanto categoria, devemos tomá-las uma a uma. Para transmitir tais formulações, a síntese das Fórmulas da Sexuação abre mão da palavra depois desdobra via poética, provocando vazios de sentido, causando inconsistência. Cada leitor deve se implicar. Em nossa leitura, assumimos Encore e Água viva ex-sistindo reciprocamente excêntricos à verdade um do outro.

 

Clarice mantém o hibridismo e o fragmentarismo na “experiência de uma falta de construção”. Diz que seu texto é “todo atravessado de ponta a ponta por um frágil fio condutor – qual? o do mergulho na matéria da palavra? o da paixão? [...] a vida é outra e tem um estilo oculto”. Assim, cultua a transmissão do ocultismo: “Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa” (Lispector, 1973[1993, pp. 27-31]). Sua potência não reside na virilidade, mas num tênue fio condutor que marca o impossível de saber, de dizer; transmitindo a força livre de poder não consistir. Podemos pensar com Clarice e Lacan na transformação de objeto-gritante para objeto-semblante, objeto-água. Trata-se de uma escrita feminina, se entendemos feminino como modo de gozo nãotodo. Não ocorre em toda escrita. Ficamos com o paradoxo: o nãotodo da experiência volátil coexiste com o todo consistente aprisionante, seu solo firme de partida.

 

Dialogando com Lacan (1972/1973[2010, p. 54]), François Récanati diz que o que permite a fragmentação em fronteiras que nunca se pode alcançar é o conjunto aberto, associado por Lacan ao nãotodo. No esquema lacaniano da sexuação, o lado fálico tenta compactar, dar consistência, ao que do lado nãotodo fálico se encontra como significante de um grande outro barrado, fragmentação limitada apenas por uma “leve história”, que Clarice nos dá de vez em quando, “um trecho figurativo para abrir uma clareira na minha nutridora selva” (Lispector, 1973[93, pp.37-38]). Com isso, tomamos Água viva como paradigma para ler o nãotodo como operador lógico inconsistente que coexiste à consistência; e também operador poético, que equivoca, não garante sentido unívoco. Entre o não sentido e uma possibilidade surge a hiância, substantivo feminino para o intervalo prenhe de algum saber, frente à convocação para criar no “instante evanescente” ou no “instante já”.

 

Os instantes de Lacan e de Clarice se dão no tempo, enquanto dimensão de acontecimentos. O tempo é a quarta dimensão, segundo a teoria da relatividade na física de Einstein [1879-1955]. Mas antes dele, na matemática, Moebius [1790-1868], já havia entendido que se um objeto tridimensional é girado sobre sua imagem no espelho, temos a quarta dimensão. Se há movimento no espaço, temos tempo. A fala e a escrita são movimentos no espaço-tempo.

 

Moebius criou um objeto topológico espacial de superfície infinita, representando a impossibilidade de antagonizar o dentro e o fora. A fita ou banda de Moebius foi trabalhada por Lacan como metáfora para dizer da estrutura do aparelho psíquico. Para além da tradição filosófica ocidental, Lacan reconhece o psiquismo como algo além da dicotomia entre corpo (soma) e alma (psykhé), mundo sensível e inteligível, exterior e interior. Além da binariedade da interioridade psíquica. Também pela topologia Lacan utiliza-se do nó borromeano para estabelecer a articulação entre Real, Simbólico e Imaginário. A banda e o nó têm em comum o vazio em seu centro. O vazio é essencial para que Real, Simbólico e Imaginário funcionem cada um à sua maneira, articulados e conexos, impactando-se contínua e mutuamente. Em torno do vazio topológico os acontecimentos se dão no tempo. O tempo, como quarta dimensão, é necessário além das três dimensões espaciais (comprimento, largura e altura), para situar a posição e o comportamento de um corpo. Espaço-tempo como um continuum fora do alcance da experiência comum.

 

Com Moebius e Einstein, para nos movermos no espaço também nos movemos no tempo. É no futuro que chegaremos a outra posição no espaço, só depois, a posteriori, como diz Lacan para o tempo psíquico de elaboração em uma análise. Stephen Hawking (1988, p. 98, tradução nossa), em “A brief history of time: from the big bang to black holes” disse que “é preciso abandonar a ideia de que há uma unidade universal chamada ‘tempo’, medida por relógios. Ao invés disso, todos teriam o seu tempo pessoal”. Lacan concorda com isso e abandona sessões de análise pautadas no tempo cronológico, estabelecendo a noção de tempo lógico para a clínica, pela singularidade do tempo que cada analisante leva para chegar a um instante oportuno, ao acessar um relance de Real. O instante é rápido, fugidio, evanescente. Se o analista interrompe a sessão no instante oportuno, quando escuta o analisante em sua topada com um dito possível diante do impossível de dizer, marca-se algo. A lógica nãotoda fálica rege o tempo das sessões.

 

Num mais além da castração, não sem ela, algo de Real restará insubmisso à palavra.  Com Lacan e Clarice, ao mesmo tempo em que a palavra congela algo, deixa restar a dúvida; delimita e deixa escapar; situa e aponta. Na linguisteria a palavra é significante aberto, passível de interpretação apenas em relação à sua cadeia, seu contexto. O inconsciente, estruturado como linguagem, assim como a quarta dimensão, escapa à compreensão. É abordável, mas nãotodo tangível por meio do significante nãotodo fálico. Se o falo é significante da falta, a palavra é fálica não foracluindo, pois marca algo e também sua falta; e aponta ao além, ao só depois, em que se elabora em torno do constante vazio insolúvel. Insolubilidade que desafia a experiência analisante, analista, leitora ou transmissora da psicanálise. Esse desafio de nossa prática impõe o tempo de espera pelos efeitos da linguagem a posteriori, nos lembram Nina Leite (2019) e Milán-Ramos (2007). Esse tempo inclui, segundo Milán-Ramos (2007), a necessidade do atravessamento do “impasse da dedução”, dizia Lacan. Impasse como dúvida ou hesitação diante da dedução, espécie de síntese resultante da dança entre o texto lido, o possível de se ler, o que resta impossível e as produções advindas desse processo. Produções criativas do inconsciente de quem lê: uma experiência que implica perda.

 

Dentre as perdas, recolhemos da literatura algo que retorna à prática clínica. O perigo é que os ditos, ainda que representantes de um semi-dizer, têm função de verdade estruturada como ficção, ainda que submetido ao nome do pai, à metáfora paterna, à castração. Lacan (1969/70[1992, p. 115]) interroga sobre nossa relação com o conteúdo manifesto e o latente na escuta clínica. Isso se articula à relação estabelecida por nós ao texto literário. O dito e o não dito, a entrelinha, o latente presente na estrutura do mito. Como Lacan (1972[2003, pp. 16-17]) buscamos ajuda na literatura, que faz efeito de “feminização”, de não saber mas querer; não dizer com palavras mas confessar a mensagem.

 

O que a psicanálise recebe da literatura é que o importante é o enigma, o saber em xeque, a letra como marca do Real, como literal e também “borda do furo no saber” (Lacan, 1972[2003, pp. 18-24]). Função comandada pelo inconsciente estruturado como linguagem. A relação sexual enunciada fracassa em se inscrever na linguagem. Mas é possível encontrar caminhos para escrever-se, por meio de ditos e outros atos, da escrita de si. Escrever o caso clínico auxilia a compreensão da direção do tratamento. Pela escrita Lacan também nos provoca com Encore, utilizando-se da homofonia entre en corps, no corpo; e en coeur, no coração. Esse “mais ainda! uma vez mais!” equivoca e convida a mais uma volta no impossível de dizer, nos leva ao possível do corpo e do coração, que associamos ao amor, como o que faz suplência à relação sexual impossível. Ao exaurir-se o empuxo ao idealizado e inteligível, algo emerge da contingência, do coração do não saber e seus sabores.

 

Como diz Joyce (1983) em Ulisses, uma perda “inelutável”. Sem luto, mas com luta pela palavra, renúncia à linguagem, pela linguagem. A quarta dimensão clariceana, com desejo decidido depois da hesitação, risca no arriscado instante-já o que cessa de não se inscrever (contingente), como rastro do que não cessa de não se inscrever (real), e que nunca termina.

 

Tempo 3: escrever com o corpo

Trago aqui algo de meu próprio risco, do que se depositou e restou como rastro desse impossível, do tempo gestado, di-gesto do que venho escutando nessas leituras.

 

O alarido alado do vento encrespa a crista das ondas. Se prova a Primavera. Quem verá? Que quero com a matéria dessas pobres rimas? Dizer que não? Algo nos chega pelas águas, um vento. Que uiva e varre, arrepia e aquece. Impossível, efetivo. Que será Isso? Esse gozo que não se sabe, e se goza? A palavra firma e esmorece. Não se esgota, segue a busca, nunca encontra. Recalca? Quem ouve? Das bordas do precipício ela se borda arriscada, arisca. Bordeia o inédito "instante-já", convoca ato cortante, rasga a rusga que cobria o impossível. ElȺ uma mulher; elȺ uma palavra. O ex-sistente diz da castração, desde a exceção ao infinito buscada, e não encontrada. Se daí pode então não poder, goza aquém, suplementar.

 

Clarice e Lacan, no mesmo tempo histórico, realidades paradoxais: ditadura e feminismos no Brasil e França, respectivamente. Escreveu-se sobre o impossível de escrever. Retomá-los para pensar um aqui, agora, de que vale? Frente ao assombro do fantasma que insiste, autoritário, explorador, colonizador, mortífero, o que podemos com o que escapa?

 

O texto Água viva "fura" algo? Talvez melhor: se faz furado porque fluido, e tem nisso potência. Cheio de vazios de sentido, se apoia em sentidoS. Exaure e vai além. Alento? Algo de nãotodo opera. Como saber não ditos? Se arrisco, digo: a palavra ex-siste, não dá conta pronta. Segue o esforço: inventar nomes, de novo, Encore! Água viva, fluida, opera absenso? Esburaca a norma, opera fora-do-sentido desde dentro. Causa êxtima um desejo de leitura de Lacan. Entende? Não faço equivalência à experiência analítica. Não é isso. É que a experiência além sentido causada pela aquática vida do texto dá as mãos ao mergulho no absenso analítico. É parceira na travessia, em prosa poética. Entende? Fracassar é preciso!

 

Além sentido, lixo, restos, rastros de água em terra, ravinada queda no vão entreletra. Litorâneas, literatura e psicanálise vêm ao mundo pela linguagem, que castra e coloniza, mas sustenta um possível, mais ainda. Que seja pela epifania, que arrebata em beleza e espanto; sentido de sim e de não. Entende? Não te peço que entendas. Escuta, escuta o ar que sai da boca e marca um som. E hoje, vem cá, transpõe o som. O que te move nesse jorro, esse jogo Água viva? Não de escrita automática, surreal. Mas de gozo causado em potência vaga, lapidada em suor. O melhor, diz Clarice, está na entrelinha. Ali onde pra Lacan está a verdade inconsciente. Mais aquém, mais além, ainda. A escrita êxtima desliza por debaixo da pele das palavras. O “instante já” insiste no que “esvanece”. Escrita feminina ou leitura feminina? Consente! Em ser a-traída pela palavra até a borda da letra. Dar cria ao traquejo. É convite-provocação. Ponho ponto, mas não final, com Clarice, que como tal, é mais de abrir:

 

Ah viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não pára, viver parece ter sono e não poder dormir – viver é incômodo. Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito.

Eu não te disse que viver é apertado? Pois fui dormir e sonhei que te escrevia um largo majestoso e era mais verdade ainda do que te escrevo: era sem medo. Esqueci-me do que no sonho escrevi, tudo voltou para o nada, voltou para a Força do que Existe e que se chama às vezes Deus.

Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas. (Lispector 1973[1993, p. 100])

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1. A escolha pela grafia nãotodo com as duas palavras unidas representa nosso entendimento sobre essa posição ou modalidade de gozo, em que o todo está incluído no nãotodo; ou a noção de todo fálico em psicanálise está contida na noção de nãotodo fálico. Desenvolvemos esse ponto em diversas oportunidades ao longo do texto.

2. A dimensão da noção de paradigma que se aproxima de como a tomamos aqui é a do Dicionário Oxford Languages: “conjunto de formas vocabulares que servem de modelo para um sistema de flexão ou de derivação”.

3. “Que Joyce tenha gozado para escrever Finnegan’s wake, isso se percebe” (Lacan, 1974/2003, p. 566).

4. Disponível em: https://youtu.be/y8JjVkZ-3Fw. Acesso em: 28 fev. 2023.

5. Há desdobramentos da noção de experiência na dissertação de mestrado, que apresenta de modo integral a pesquisa, trabalhando um diálogo entre a ética e o discurso psicanalíticos, a literatura e a função poética em Lacan.

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